domingo, 6 de setembro de 2009

Os óculos de Drummond

Cláudio Guimarães dos Santos

Volta e meia algum vândalo inconseqüente arranca os óculos da estátua de Drummond que fica em Copacabana, no calçadão do Posto 6, bem pertinho do velho Forte, no local onde o poeta gostava de se sentar.
O Poder Público repõe os óculos, mas eles são novamente arrancados algum tempo depois.
Desconheço se outras estátuas de poetas - como a de Fernando Pessoa, em Lisboa, bem em frente ao Café onde ele costumava rabiscar os seus poemas, ou a do nosso querido Vinícius, erigida em Itapoã, lá na bela Salvador - costumam sofrer semelhantes desditas.
Também ignoro se Drummond realmente gostava dos seus óculos; se eles eram, para ele, uma “segunda natureza”, a tal ponto que insistisse em tê-los na cara até mesmo quando chorava, deixando que as suas lágrimas lavassem córneas e lentes; ou se, teimoso, ele os tirava o tempo todo, como faz um garotinho – e um grande poeta não deixa jamais de sê-lo - revoltado com a “gente grande” que o obriga a utilizá-los. (Se essa última possibilidade for de fato a verdadeira, o tal sumiço dos óculos passa a ser, ao invés de uma agressão, um tributo pungente à memória de Drummond... Mas, não nos antecipemos...)
O que sei é que esses vândalos não têm, o mais das vezes, nenhuma idéia da real identidade da pessoa cuja estátua depredam com tanta obstinação (e, talvez, com algum prazer...). Se soubessem da verdade, talvez se comportassem de modo bem diferente, pois os poetas – especialmente os muito bons - são capazes de seduzir até as feras, como nos lembra o belo mito de Orfeu.
O mais plausível, no entanto, é que esses vândalos imaginem que se trate da estátua de um político ou, pelo menos, de alguém suficientemente rico e poderoso para estar justamente ali, naquela localização tão nobre, em que os cheiros “plebeus” de Copacabana já se mesclam aos aristocráticos perfumes de Ipanema - o baluarte par excellence da noblesse de souche carioca (a qual relegou, diga-se de passagem, para a Barra e para o Recreio, a legião dos emergentes deslumbrados).
É natural, portanto, que o contraste - que é extremo nesse trecho da orla - entre a miséria das favelas penduradas nos morros e a opulência dos edifícios de frente para o mar, venha a estimular todo o tipo de revolta e que esta acabe sendo dirigida, entre outros alvos, para a inocente estátua de Drummond. Afinal, por que razão os “intocáveis” da sociedade fluminense deixariam em paz, num lugar tão conspícuo, a estátua de um velho “quatro-olho” e careca, que acreditam ter sido um ricaço, enquanto eles mesmos são caçados, como bichos, por esquadrões da morte e “tropas de elite”? Certamente é assim que se manifesta, ainda que com vocabulário e sintaxe diferentes, o rancor dos “descamisados” da “montanha” pelos bacanas da “planície”, para fazermos um pendant latino-americano à oposição existente entre duas conhecidas facções políticas ao tempo de Revolução Francesa.
Todavia, em vez de prosseguirmos nessa trilha, por sinal já bastante percorrida, talvez fosse importante que refletíssemos um pouco. Será de fato realista atribuir toda a culpa por esses atos de vandalismo à multidão de “capitães de areia” que “infestam” as praias da Zona Sul, a essa “escória”, enfim, das “classes baixas” - uma expressão que tão bem ilustra o preconceito que permeia a visão de mundo das (autodenominadas) “classes altas”? Pois pode ser muito bem que estejamos enganados e que, ao contrário do que alguns preferem crer, os tais vândalos provenham das melhores famílias, da fina-flor da jeunesse dorée (et pourrie...) do Rio de Janeiro, da elite que estuda em colégios e faculdades caríssimas e da qual la crème de la crème são os pittboys turbinados que praticam as suas artes marciais em academias que custam os “óculos da cara”, que se drogam a mais não poder e que circulam com seus carrões importados (sem respeitar, evidentemente, as regras de trânsito) tendo ao lado patricinhas intragáveis e starlets da TV...
Evidentemente, se não quisermos ser tendenciosos, nem para a “esquerda” e nem para a “direita”, precisaremos admitir que os óculos de Drummond podem ter sido arrancados por delinqüentes de qualquer desses dois grupos: os que têm grana e os que não têm...
Existe, contudo, uma terceira hipótese, talvez a mais interessante entre todas as que avancei até agora, ainda que pouquíssimo provável. E se o sumiço periódico dos óculos forem a obra premeditada de uma única pessoa: ninguém menos do que o filho de D. Lili e do Sr. J. Pinto Fernandes – “o que não tinha entrado na história” –, os dois inesquecíveis personagens do poema “Quadrilha”?
Desenvolvamos um pouco essa idéia supondo que, além de interessante, esse poema de Drummond se refere, de fato, a pessoas reais.
Imaginemos, primeiramente, que o tal indivíduo – o J. Pinto Fernandes Filho, ou Pinto Filho, para ficar mais fácil – se tivesse tornado um inimigo figadal de Drummond. Ele jamais perdoara o poeta pelo desprezo com que este tratara o seu finado pai naquele fatídico último verso. Ainda mais o seu pai, um ilustre burocrata, que também escrevera centenas de poemas e que, por pouco, não fora eleito, com a ajuda de políticos poderosos – todos também “poetas”... –, para a Academia Brasileira de Letras. (Fora vencido, infelizmente, por outra nulidade literária, que possuía, todavia, um cartucho político maior.) Assim, apesar da admiração irrestrita do filho e da dedicação desmedida de D. Lili, o Sr. J. Pinto Fernandes não lograra superar a mágoa que lhe causara Drummond, tendo enfim falecido depois de longos anos de etilismo crônico, já que “bebia para esquecer” a desfeita do poeta. Desde esse dia, o jovem Pinto Filho jurara não descansar enquanto não vingasse a memória do seu pobre pai. Covarde por natureza, não fora, porém, capaz de tomar qualquer atitude contra o odiado poeta enquanto este esteve vivo. Mas aquela estátua no calçadão, tão isolada na madrugada, constituía um alvo fácil, até mesmo para ele.
Poderíamos, é claro, continuar essa tocante narrativa, mas vou interrompê-la (abruptamente) para arriscar uma quarta e última hipótese, de todas a menos plausível.
E se o nosso Pinto Filho, ao invés de um inimigo, fosse, antes, um devoto de Carlos Drummond de Andrade? E se ele fosse imensamente agradecido pelo fato de o poeta ter dado ao seu amado pai a única alegria verdadeira que este teve em toda a sua vida de burocrata medíocre: a de saber-se imortalizado no poema “Quadrilha”, a de ter entrado para a História - com a letra H maiúscula - sem precisar ter feito nada de importante, mas, simplesmente, por que “não tinha entrado na história”?...
Imaginemos, então, que esse nobre Pinto Filho, com o seu gesto de sumir com os óculos, estivesse, na verdade, querendo poupar o poeta desse monte de coisas horríveis de que todos somos testemunhas - nós que ainda enxergamos (uns com óculos, outros sem) - e que acontecem não somente no Rio de Janeiro, mas no Brasil inteirinho, tais como o lento assassinato das crianças que sucumbem sem escola, sem dignidade e sem perspectiva; ou a indecência da jogatina política e da falsidade ideológica dos partidos; ou a falta de caráter dos nossos “grandes líderes”; ou a desesperança imensa que nos causa a impunidade dos ricos; ou a destruição irremediável dos nossos ecossistemas mais preciosos; ou o “turismo selvagem” que transforma os nossos balneários em prostíbulos a céu aberto, onde estrangeiros, com euros e dólares, leiloam as vidas dos nossos cidadãos e cidadãs adolescentes; etc., etc. e tal...
Deixo, ao leitor, a liberdade de escolher a melhor explicação para o sumiço repetido dos óculos de Drummond... Mas em troca eu lhe peço, de mãos postas, que jamais – jamais mesmo! - feche os seus olhos a tanta coisa vergonhosa, como muitos, infelizmente, fazem hoje, no Brasil.

9 comentários:

Simone disse...

Ainda "matutando" sobre a cegueira coletiva (e seletiva!) de nossa brava gente brasileira, mas encantada com suas reflexões. Sou apenas mais uma que não consegue deixar de se indignar...

Parabéns pelos textos!

Anônimo disse...

Independência ou morte? É a frase mais farsesca propalada por aqui, o mártir da tal independência Tiradentes ao manifestar se contra os 20% foi enforcado, um carro vendido por U$ 15.000 nos EUA por aqui fica em torno U$ 38.500, uma revista com preço estampado na capa U$ 4,99 custa R$ 23,00, não seria mais interessante continuar dependente pagando os 20% aos portuguêses?
Claro que é independência, mas isso só virá quando todos nós aprendermos a pensar criticamente para não sermos embromados por este sistema farsesco, e começar lutar por marco constitucional firme para derrubar a mascar da farsa. Caso não seja você mais um que faz self-promotion como fez tal professor de Harvard que ao primeiro convite veio correndo para ocupar ministério de não se sabe o que para adicionar ao seu currículo, poderia escrever sobre as “Urnas eletrônicas tupiniquim mais um instrumento para perpetuar a farsa”.

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto "Independencia ou Morte?". Com tantos desmandos, porque não nos indignamos? O que nos falta, como povo, para nos organizarmos e enfrentarmos estas situaçoões que se perpetuaram atraves do desenrolar de nossa história social e política. Já passou da hora de colocarmos um ponto final em todas esta safadezas. Continue com suas oportunas contribuições para manternmos acesa a chama da esperança.
Jose M.M. Caldeira
josemcal@terra.com.br

Anônimo disse...

Olá Cláudio!

Hoje,07 de setembro, acordei meio desconfiada,com um sentimento de não saber bem o que comemorar, algo me dizendo que não há mesmo o que festejar.Dúvidas a parte,abro a Folha e encontro você, a me dizer que não há dúvida alguma, a me dizer que a coisa está feia mesmo, e é preciso ter olhos pra ver.Mas sua pergunta final é difícil - me parece que como toda pergunta final de psicoterapeutas- só sei dizer que entre os barulhos dos desfiles aqui no Recife, preferi ouvir a nona sinfonia de Beethoven.Nem a independência nem a morte, inconscientemente, escolhi pela esperança.
Leio sempre seus artigos na folha,mas nunca tinha visto o endereço do blog, fiquei feliz em descubri-lo.
Parabéns!
Ana

CARLOS RUSSO JUNIOR disse...

Prezado Cláudio, tenho acompanhado com um espírito "katártico" suas reflexões e desabafos e, dentro deles, as utopias retratadas em Independência ou Morte.
Sou da geração que nos anos 60 sublevou-se, no movimento estudantil fiz parte da últiuma diretoria eleita da UEE, na clandestinidade participei com todo meu coração e mente da luta armada, fui preso politico e exilado. Digo isto por nao partilhar o leite daqueles que se agarram às tetas públicas e gozam indenizações que se transformaram, em muitos casos, nos 30 dinheiros de Judas. Nao sou somente eu e nem constituo excessão dentre os "intelectuais dos anos 70" .
Aliás, se voce me permite, toda generalizaçao é burra.
Como você, cursei Medicina na USP- Ribeirao, Odontologia na USP,e, hoje, passado dos 60, tento ser um cidadão-filósofo.
Se você quizer poderemos trocar textos e opiniões, no que, aliás, eu teria muito prazer.
Meu nome Carlos Russo Junior e meu e-mail é crussoj@uol.com.br.
Abraços

manfredeconomics disse...

Prezado Cláudio,gostaria de me solidarizar com seu pensamento e argumentação no artigo:"Independência ou morte",publicado hoje no jornal "Folha de São Paulo".Para futura reflexão,poderia publicar um artigo sobre o famoso e escondido "Pacto da mediocridade",que vigora em todos os setores desse grande país.Onde a educação virou produto de consumo,e as escolas particulares grandes "shoppings".Alguns fingem que ensinam,e outros fingem que aprendem,e as escolas faturam!O meio acadêmico vive na "Ditadura da ABNT",onde a forma vale mais que o conteúdo,e avaliação da CAPES,´só vale por número de artigos e pesquisas ou téses publicadas,venceu o quantitativo,perdeu o qualitativo.Perdeu o país,venceu os medíocres,ou seja,os "burrocratas!Viva a inddependência da miséria cultural e intelectual que assola todos os cantos verdes amarelos dessa terra chamada Brasil.Gostaria de lembrar que o finado PT,é cria do finado PSDB.Afinal,com essa oposição que temos,que corre como Usain Bolt para sair ao lado de Lula emtodos os eventos que são convidados,o que se pode esperar!Nada!Tem vivos que parecem mortos,e mostos que permanecem vivos!Nós viramos um país de zumbis,comprados pelas casas bahia,um iphone,um ipod,uma televisão lcd,futebol e miséria.E o melhor a miséria moral,intelectual que se alstra mais rápido que o vírus H1N1.Nas margens plácidas,só restaram detritos!Os detritos da mediocridade!Parabéns pela reflexão e grande abraço.

Marcio BSB disse...

Parabéns pelo artigo escrito na folha de são paulo. Infelizmente a falta de caráter no país é grande, desde jovens parando em vagas para idosos, passando por estacionamento em local proibido, pelo peso de pacote de biscoito adulterado ou pelo caminho que estamos trilhando agora, indo em passos largos rumo a uma ditadura lulista-petista.
Precisamos de mais do que isso. O país e as pessoas PRECISAM ter mais responsabilidade.
Obrigado.

Anônimo disse...

Prezado Dr. Claudio. Você (escuse o tratamento)
lavou minha alma brasileira, de cabo a rabo, em seu artigo
deste 7 de setembro na FSP. Sou jornalista,
fui "comunista" na Faculdade, combati a ditadura
(sem direito à indenizações. Estava na Veja, e
andei frequentando quartéis) e até votei
nesse imbecil que está no Planalto, depois
de ver o Covas afundar no primeiro turno.,
"Vemo-nos, assim, ainda que muitos não o
queiram, condenados a agir e a nos insurgir
contra esse silêncio incompreensível dos bons".
Estou multiplicando teu texto.

Abço e a luta continua (contra eles).HT

Adilson disse...

Claudio,

Sua matéria na Folha de hoje, 9/3/2011 entitulada Qualidade de Morte é brilhante.
Parabéns.