sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A era das múmias

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS
FOLHA DE S.PAULO

SEÇÃO TENDÊNCIAS/DEBATES
01 de janeiro de 2009

Múmias de todas as classes, deixai de vos rebelar contra o destino! Conformai-vos com a finitude irremediável dos homens, do universo

O passado, não há dúvida, é muito sedutor, já que se deixa "reescrever" à vontade, sem maiores compromissos.

São provas disso as confissões que se fazem a sacerdotes e terapeutas: nelas, os erros se disfarçam de acertos e os fracassos reluzem como sucessos. (Quantos anos de terapia ou de culto não são, às vezes, necessários para que um homem se reconheça como é, moderando o teor fantasista e benevolente dos seus relatos!...) São também evidências da maleabilidade do passado os revisionismos com que topamos, amiúde, em alguns livros de história, em que bandidos e assassinos contumazes são transmutados -como que por encanto!- em exemplos edificantes de heróis martirizados (e vice-versa), ao sabor puro do viés ideológico dos historiadores.

Mais que tendência ligeira, o apego às coisas que já se foram é traço saliente da nossa própria humanidade: do animismo rudimentar à mais elaborada religião, trata-se sempre dos mortos -ainda que lhes chamemos "deuses"- e dos rituais mais ou menos complexos que lhes são devidos.

Tal apego, todavia, pode também vir à luz de maneira patológica: seja como fixação insensata no passado e em tudo que o evoque -tradições, objetos, ancestrais-, seja como desejo (paradoxal) de desfrutar uma eterna juventude, entretendo-se, sem descanso, com "novidades" -um desejo no qual a atração doentia pelo "velho" é substituída, compensatoriamente, pela sede insaciável do "novo".

Um exemplo evidente, ainda que nem sempre reconhecido, de fixação malsã pelo passado é a tendência demasiado preservacionista que, já há algumas décadas, vem transformando alguns países do "Ocidente desenvolvido" num verdadeiro "paraíso dos museus". Essa tendência extravasou, recentemente, os limites do "mundo civilizado", atingindo, entre outras "periferias", a cobiçada Amazônia.

Após terem museificado os seus próprios territórios, alguns ecofilantropos querem, agora, semear os "tristes trópicos" de incontáveis "museus a céu aberto". Buscam, assim, transformar a terra alheia em "patrimônio da humanidade" para seu uso (quase) exclusivo, onde possam dar vazão, durante as férias, a anacrônicos devaneios rousseaunianos, retornando, depois, para o conforto tecnológico dos seus lares.

Um pouco mais e será só para esses novos Stings (e suas modernas filmadoras) que os nossos pobres indígenas -condenados, sem escolha, a um eterno arcaísmo- repetirão os seus monótonos rituais, enclausurados em imensas redomas verdejantes.

Enquanto isso, nos cinturões de favelas que estrangulam as capitais brasileiras, milhões de indivíduos -igualmente cidadãos- continuarão mergulhados na miséria, espremidos entre o desprezo dos poderosos e a "negligência benigna" do Estado.

Já no caso da negação doentia do envelhecimento, era fatal que, nesta época tão epidérmica -tudo é "questão de pele"-, tal recusa consistisse no esforço em perpetuar a aparência, já que é ela que denota, de modo direto e visível, a indesejada passagem dos anos. E são as "celebridades" -atrizes, políticos, apresentadores de TV, profissionais liberais, intelectuais- os que mais padecem desse mal.

Assistimos, assim, ao desfile deprimente de rostos inexpressivos, de olhos que não se fecham, de bocas que não sorriem, de ridículos implantes capilares, de magrezas cadavéricas, de peitos emborrachados, de bundas que extravasam a cintura das calças como as bordas de um "soufflé".

Ignoro se tais caricaturas, que se apegam à juventude como a criança à chupeta, terão tanto sucesso como os faraós do antigo Egito. Diga-se, porém, a seu favor que, com o auxílio da cosmética e da plástica, elas já lograram, pelo menos, mumificar-se ainda em vida!

Infelizmente, não penso que possamos evitar que tipos como os historiadores revisionistas ou os ecofilantropos continuem a perseguir os seus funestos desígnios: seus espíritos, mais do que seus corpos, é que foram mumificados. Sustenta-os, na sua busca, a doce ilusão de estarem certos. Todavia é possível que, com as outras múmias, nós tenhamos mais sucesso... Quem sabe ainda não é tempo para despertá-las? Dirijamo-lhes, pois, um apelo sincero:

"Múmias de todas as classes, deixai de vos rebelar contra o destino! Conformai-vos com a finitude irremediável dos homens, das ideias, das nações, do universo... de tudo, enfim! Permiti que a vida, no seu fluir misterioso, vos transforme de uma vez em pó! Não tendes nada a perder senão o bolor de vossas ataduras! Múmias do meu Brasil, abandonai, para sempre, os vossos sarcófagos!".


CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS, 48, médico, psicoterapeuta e neurocientista, é escritor, artista plástico, mestre em artes pela ECA-USP e doutor em linguística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França).

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