sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Droga!

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS
FOLHA DE S.PAULO

SEÇÃO TENDÊNCIAS/DEBATES
30 de junho de 2008

Vamos tratar de um assunto espinhoso: a investigação das verdadeiras razões pelas quais as drogas são tão buscadas por nós humanos

O crescimento exponencial do consumo de drogas, que é tanto maior quanto mais amplo for o significado atribuído à palavra, é um dos temas que mais preocupam a sociedade contemporânea. Curiosamente, o quase-consenso entre os especialistas de que a melhor maneira de diminuir esse consumo é o combate sem tréguas ao narcotráfico faz com que muitos deles se esqueçam -ou prefiram se esquecer...- de tratar de um assunto bem mais espinhoso: a investigação das verdadeiras razões pelas quais as drogas são tão buscadas por nós humanos.

Tal negligência parece-me notável, já que é precisamente a imensa demanda por drogas de todos os tipos -do álcool ao ecstasy, passando pelo videogame, pelos cultos fundamentalistas e pelos livros de auto-ajuda, sem esquecer, é claro, o "futebor"- que faz com que elas se transformem num problema tão importante. E por que isso ocorre?

A minha suspeita é que essa investigação só pode ser encetada por quem se disponha a colocar em xeque o próprio ethos consumista e competitivo que anima a sociedade em que vivemos. Mas, para tanto, é preciso coragem, pois balançar o alicerce mais bem protegido da nossa civilização pode trazer conseqüências desagradáveis para a saúde dos que ousarem fazê-lo. E coragem -sinto dizê-lo- é um "bem escasso" em nossos dias...

Tal investigação, evidentemente, não poderá jamais ser realizada com base no utilitarismo objetivista e "industriofílico" que predomina na ciência contemporânea, segundo o qual um "alto índice de produtividade acadêmica" é muito mais relevante do que a qualidade ou a originalidade do que, de fato, é produzido.

Com efeito, o que esperar de uma época em que muitos dos profissionais de saúde que tratam dos usuários de drogas (concebidas como "coisas ruins") acreditam, de forma ingênua, que as doenças mentais serão, um dia, inteiramente curadas por drogas (concebidas como "coisas boas")?

O que esperar dos alienistas cibernéticos, dignos êmulos de Simão Bacamarte, que se contentam em rotular o existir humano, incapazes que são de compreendê-lo, "medicalizando-o" até a náusea? Que se comprazem em atulhar de "transtornos mentais" a já abarrotada psicopatologia, na ânsia de adequá-la às exigências da moda e do mercado?

O que esperar desses herdeiros frustros de Paracelso, que são iludidos pelos conglomerados farmacêuticos e vivem sonhando com "pílulas da felicidade" capazes de tratar -para sempre e sem recaídas- o chamado "mal de vivre", que corrói a humanidade desde Adão (ou desde a australopiteca Lucy, para os que preferem um mito fundador "mais científico" para a nossa espécie)?

O que esperar desses tecnólogos do espírito, que primeiro se convencem de que as pessoas são computadores e depois se surpreendem quando elas agem -e reagem- como seres humanos?

O que esperar desses burocratas da alma, que desconhecem a riqueza conceitual de um Jung, de um Diel, de um Freud; que nada sabem das sutilezas psicológicas de um Stendhal, de um Flaubert, de um Machado; que jamais leram Platão, Hegel ou Heidegger; e que se curvam, por isso mesmo, maravilhados, ao didatismo superficialíssimo da terapia cognitivo-comportamental, essa "sopa" requentada das idéias de Skinner, entremeadas de cognitivismo mal digerido e temperadas com pitadas de neurociência "fashion"? O que esperar de tal visão da natureza humana? Quase nada.

E, todavia, é justamente nessa visão que a sociedade apavorada -e que não sabe mais para onde fugir, porque tem medo de si mesma- pretende jogar as últimas fichas. Incapazes de controlar os cidadãos por meio do famoso poder de polícia, os dirigentes da sociedade encurralada apelam para essa óptica psicofilosófica míope, na esperança vã de que ela possa auxiliá-los a encontrar algum tipo de "solução final" para o problema das drogas.

Buscam, então, eliminar com os traficantes também os incômodos consumidores -que nunca deveriam ter existido!...-, apondo-lhes um rótulo diagnóstico conveniente e relegando-os a alguma "gaveta" taxonômica, da qual, com um pouco de sorte, não sairão jamais, como se fossem lacrados numa (asséptica) câmara de gás...

(Agem, assim, tão tolamente quanto os adultos que hipersexualizam as crianças e depois se queixam da explosão da pedofilia...) Perante tudo isso, as pessoas de bom senso decerto lamentarão o estado deplorável em que nos encontramos. Contudo, não desanimemos! Sejamos "proativos e otimistas", como aconselham os "gurus" de plantão... Afinal, as coisas sempre podem piorar...

Mas que droga!

________________________________________

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS , 48, médico, psicoterapeuta e neurocientista, é escritor, mestre em artes pela ECA-USP e doutor em lingüística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Nenhum comentário: