sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Aborto, embriões e o mea-culpa de Janine

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS
FOLHA DE S.PAULO

SEÇÃO TENDÊNCIAS/DEBATES
05 de julho de 2007

Ironicamente, os principais responsáveis por difundir essa imagem distorcida do conhecimento científico são os próprios cientistas

Com a vinda do papa Bento 16, o debate sobre o aborto, bem como sobre a pesquisa científica com os chamados embriões inviáveis, ganhou o destaque que se esperava. De um lado, vociferam os que se dizem defensores intransigentes da vida ("desde a concepção até o seu inevitável declínio"), um grupo bastante heterogêneo, formado não apenas por cristãos, na sua maioria católicos, mas também por fiéis de outras religiões e até por alguns ateus.

Do outro lado, estão os que se proclamam guerreiros incansáveis na "cruzada" contra o obscurantismo religioso, os que se crêem verdadeiros "portadores da luz" -que não se percam pela soberba...- e, portanto, detentores inquestionáveis do monopólio da razão. Uns e outros, a meu ver, estão certos e errados, muito embora por motivos que todos eles parecem fazer questão de ignorar.

Os que sustentam que as verdades da fé também devem ser levadas em conta sempre que é alterado, de forma relevante, o ordenamento jurídico de um Estado estão certos em fazê-lo. Com efeito, toda lei, para ser realmente legítima, não pode passar ao largo das normas religiosas que norteiam as vidas de milhões de cidadãos, ainda que elas o façam "apenas" de fato, e não de direito. Contudo, uma coisa é levar em conta um determinado ponto de vista; outra, muito diversa, é acatá-lo sem crítica ou ponderação.

Erram, portanto, os que pretendem abusar do princípio metodológico da "escuta ecumênica", em si mesmo uma importante salvaguarda. Pois não se pode, impunemente, transformá-lo numa espécie de "imperativo totalitário" a serviço de uma única opinião, seja ela a do papa ou a de um Prêmio Nobel. Afinal, as leis que irão disciplinar cada uma dessas duas questões -o aborto e a pesquisa com os embriões inviáveis- terão vigência nacional, aplicando-se, indistintamente, aos seguidores de qualquer credo ou opinião.

Estão certos, por sua vez, os que afirmam que é necessário discutir esses temas polêmicos também à luz dos argumentos científicos e da saúde pública, sopesando, com critério, os aspectos relacionados à proteção da saúde da mulher -no caso da legalização do aborto- ou das perspectivas para o tratamento de moléstias crônico-degenerativas -no caso do aproveitamento dos embriões inviáveis. Estão errados, todavia, quando sustentam, certamente imbuídos de um positivismo ingênuo, que a ciência deve sempre ser tomada como o parâmetro absoluto, como o "fiel da balança do próprio Deus".

Equivocam-se, portanto, quando descartam qualquer argumento que não reconheçam como "científico", por julgarem-no desprovido de objetividade, pouco importando o domínio a que se refira. Ao absolutizarem desse modo indevido o poder da ciência, essas pessoas acabam por cometer o mesmo erro que pensavam eliminar, adorando um ídolo no lugar de outro. Ironicamente, os principais responsáveis por difundir essa imagem distorcida do conhecimento científico são os próprios cientistas, muitos deles desprovidos de uma formação filosófica que seja digna desse nome.

Tornam-se, por isso, freqüentemente, meros tecnocratas do conhecimento, mais preocupados com a gestão das "verbas de fomento" e a publicação de resultados em "revistas de impacto" do que com a reflexão sobre a natureza complexa da ciência. Além disso, o próprio fazer científico, como qualquer atividade humana, é transitório e imperfeito e precisa, sim, ser fiscalizado pelos membros da sociedade em que se dá. São eles, aliás, num Estado democrático, os únicos a ter de fato legitimidade para fazê-lo, permitindo ou proibindo comportamentos por meio das leis elaboradas pelos representantes que elegem periodicamente. Abrir mão desse princípio significaria admitir que a práxis científica está fora do alcance de qualquer controle ético, o que me parece absurdo.

É realmente uma pena que os integrantes desses dois grupos não decidam, vez por outra, ponderar -não somente com a razão mas também com o sentimento- sobre as idéias e as crenças que sustentam. Se o fizessem, talvez se tornassem mais humildes e, com isso, mais capazes de reconhecer os seus equívocos. Assim como o fez Renato Janine Ribeiro, tempos atrás, num corajoso e sincero mea-culpa, publicado neste mesmo jornal, que motivou tão intensas reações, precisamente porque foi lúcido.

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CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS, 47, médico, neurocientista e escritor, é doutor em lingüística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França), professor da pós-graduação em morfologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador da Unidade de Reabilitação Neuropsicológica.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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